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Capítulo 14 – O Encontro com Mestre Northwind

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O vento que a guiara desde a torre finalmente cessou.


Não diminuiu. Cessou — como se segurasse o próprio fôlego.


Elena parou no meio da passagem estreita de gelo. A montanha parecia observá-la, silenciosa, expectante, como se cada centímetro daquela paisagem estivesse aguardando o momento exato de revelar algo que sempre esteve ali.


A neve brilhava com uma luz azulada que não vinha do céu. Era como se o chão respirasse. Como se o gelo carregasse lembranças muito antigas, prontas para vir à tona.


O ar ficou pesado, vibrante, tão sutil quanto um fio de vela prestes a se apagar — só para acender mais forte.


Então veio o primeiro sinal.


Um som profundo, grave, que parecia nascer do interior da terra:como o estalo de um galho gigante, ou o rolar distante de pedras antigas. Elena sentiu aquilo no peito antes de ouvir.

A temperatura caiu, mas não de um frio comum. Era um frio vivo, inteligente, com direção.


E então, a neve diante dela… moveu-se.

Não caiu. Não soprou. Moveu-se como criatura.


Elena prendeu o ar por um instante. Não de medo — mas de reverência.


O vento se ergueu.


A princípio era só ar. Depois, forma. E depois… presença.


Como se o próprio inverno tivesse decidido assumir um corpo para encontrá-la.


Uma silhueta alta, feita de cristais, gelo e luz, começou a se formar no centro da trilha. Seu contorno parecia mudar de ângulo a cada segundo, como se fosse esculpido por mãos invisíveis — ou por forças que não dependiam de matéria.


O manto azul-profundo ondulava mesmo sem vento, como se tivesse vida própria. Pequenos flocos de neve gravitavam ao redor daquela figura, girando em órbitas caóticas e perfeitas, como estrelas dançantes.


Os olhos — dois pontos de luz cristalina — se abriram.


Eles não brilhavam como lâmpadas. Eles vibravam, como se fossem pontos onde o céu se dobrava sobre si mesmo.


E a voz… Ah, a voz.


Ela não veio de fora. Ela veio de todos os lugares ao mesmo tempo. Do ar. Da neve. Do chão. De dentro dela.


Elena.


Ela estremeceu.


Não era um chamado. Era um reconhecimento — como se aquele nome tivesse sido dito pela primeira vez de forma verdadeira.


A figura avançou um passo, e quando o fez, o próprio chão pareceu ajustar-se, como um discípulo que abre espaço para seu mestre.


Você atendeu — disse ele, e o som parecia ecoar dentro do peito dela, vibrando nas costelas, reverberando no cerne.


— M-mestre Northwind… — ela engoliu em seco, sem saber como sabia o nome, mas sabendo. — Eu senti você… desde o início.


Ele inclinou levemente a cabeça. Era um gesto pequeno, mas o ar ao redor se curvou em resposta.


Não me sentiu. Sentiu o que eu movimento.


A frase pairou no ar como uma chave.


Os pelos dos braços de Elena se arrepiaram. O vento que falava… as sílabas antigas… os chamados…


— O vento que fala — Elena murmurou. — Era você?


O Guardião ergueu uma sobrancelha feita de gelo puro, e o movimento criou microfraturas luminosas sobre sua pele cristalina.


Em parte. O vento não é meu servo, mas meu irmão. Ele leva minhas mensagens… mas traz de volta as suas.


Elena piscou, confusa. Seus pensamentos giraram como neve num redemoinho.


— As minhas?


Northwind se aproximou.


Cada passo dele parecia moldar o mundo. O chão não rangia sob seu peso — ele se ajustava, harmonizava, como se reconhecesse a autoridade daquela presença.


Seu tamanho era imenso e, ao mesmo tempo, não assustava.

Era como estar diante de uma avalanche calma — uma força colossal que escolhe não destruir.


— O vento só chama quem já está chamando — explicou ele, com uma suavidade que contrastava com sua imponência. — Você se esquece do que busca, Elena. Mas o vento não se esquece de quem o invoca.


Os olhos dela arderam, não de frio, mas de verdade.


— Eu não sei quem eu sou — ela confessou, sentindo uma vergonha antiga, quase infantil, como se estivesse admitindo algo que sempre soube, mas nunca teve coragem de encarar.


A expressão de Northwind mudou. Não havia dureza. Havia… orgulho. Um orgulho silencioso, sereno, profundo.


Saber quem você é não é o ponto — ele disse. — É ter coragem de caminhar enquanto se lembra.


O vento soprou atrás dela, como se concordasse. Como se lhe desse um empurrão invisível.


Elena apertou o manto no peito.


— E por que agora? Por que você se mostra?


O Guardião ergueu uma mão imensa, construída de gelo translúcido. Quando a luz tocou seus dedos, pequenas constelações internas se acenderam, como se milhões de partículas estivessem vivas dentro dele.


Um pequeno cristal azul surgiu entre seus dedos — não entregue, mas revelado.


— Porque coragem não nasce antes da jornada — disse ele. — Nasce no exato momento em que tudo parece grande demais.


Os olhos de Elena encheram de lágrimas. Lágrimas quentes, apesar do frio.


— Eu sinto… — ela levou a mão ao peito onde o Coração do Tempo pulsava — …que tem algo acontecendo dentro de mim. Algo que eu não entendo.


Northwind aproximou-se mais um passo, até que ela pudesse sentir o ar frio vibrando ao redor dele — um frio que não doía, apenas despertava.


— Você está mudando de forma. De dentro para fora. FAR só devolve o que está pronto — repetiu ele, ecoando o ensinamento de Morgana. — E você está quase pronta para lembrar.


Elena respirou fundo, e o ar congelado pareceu queimar por dentro — não como gelo, mas como claridade.


— Lembrar… do meu nome?


O vento se ergueu numa espiral lenta, como se o próprio ar estivesse ouvindo a pergunta.


Northwind sorriu, e o sorriso abriu fissuras de luz no gelo que formava seu rosto, como rachaduras que revelavam ouro líquido por dentro.


— Sim. O nome que acende portas. O nome que sustenta mundos. O nome que FAR sussurrou quando você atravessou o portal.


Elena sentiu o coração bater forte, tão forte que parecia querer saltar do corpo.


— Mas eu ainda não sei…


Não precisa saber — ele a interrompeu com gentileza firme. — Apenas caminhe. As estrelas já o cantaram. Agora, você deve ouvi-lo.


Ele então estendeu a mão — não para entregar algo, mas para que ela se aproximasse. Para que ela escolhesse.


Elena hesitou.


— E se eu não estiver pronta?


Northwind inclinou o corpo, trazendo o rosto próximo ao dela, e sua voz saiu como brisa sobre neve recém-caída:


Coragem não é ausência de medo, Elena. Coragem é caminhar apesar dele.


A frase penetrou algo profundo dentro dela — tão profundo que doeu e aliviou ao mesmo tempo. Ela não era exigência. Era liberação.


O Guardião ergueu o braço em direção ao Norte, e quando o fez, o céu inteiro respondeu.


As nuvens se abriram. A neve cintilou como aurora. E um caminho de luz azul se formou na montanha, serpentando entre abismos e picos como um rio de estrelas congeladas.


Elena sentiu o vento soprar de novo — mas agora havia calor nele, um calor que vinha de dentro dela, não de fora.


— A partir daqui — disse Northwind — o vento te guiará. Mas cuidado: ele só leva quem confia. Quem tenta controlar… se perde.


Elena assentiu, tocando o peito uma última vez, como se quisesse se despedir da parte de si que ainda duvidava.


— Eu… vou tentar.


Northwind abriu um sorriso que parecia amanhecer.


— Não tente. Caminhe.


E então — como se nunca tivesse estado ali — ele se dissolveu em vento puro. Uma espiral de luz azulada subiu aos céus, misturando-se à aurora que nascia sobre as montanhas.


O silêncio voltou.


Mas não era o mesmo silêncio de antes. Era um silêncio que carregava direção.Um silêncio que falava.


Elena respirou fundo, olhou o caminho de luz criado por Northwind, e deu o primeiro passo.


O vento, agora desperto, a recebeu com um murmúrio suave — como um velho amigo que diz “eu estava te esperando”.


A jornada do Norte continuava.


E desta vez, ela não caminhava por instinto. Caminhava por coragem.

 
 
 

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