Capítulo 14 – O Encontro com Mestre Northwind
- O Batom Viajante

- 6 de dez.
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O vento que a guiara desde a torre finalmente cessou.
Não diminuiu. Cessou — como se segurasse o próprio fôlego.
Elena parou no meio da passagem estreita de gelo. A montanha parecia observá-la, silenciosa, expectante, como se cada centímetro daquela paisagem estivesse aguardando o momento exato de revelar algo que sempre esteve ali.
A neve brilhava com uma luz azulada que não vinha do céu. Era como se o chão respirasse. Como se o gelo carregasse lembranças muito antigas, prontas para vir à tona.
O ar ficou pesado, vibrante, tão sutil quanto um fio de vela prestes a se apagar — só para acender mais forte.
Então veio o primeiro sinal.
Um som profundo, grave, que parecia nascer do interior da terra:como o estalo de um galho gigante, ou o rolar distante de pedras antigas. Elena sentiu aquilo no peito antes de ouvir.
A temperatura caiu, mas não de um frio comum. Era um frio vivo, inteligente, com direção.
E então, a neve diante dela… moveu-se.
Não caiu. Não soprou. Moveu-se como criatura.
Elena prendeu o ar por um instante. Não de medo — mas de reverência.
O vento se ergueu.
A princípio era só ar. Depois, forma. E depois… presença.
Como se o próprio inverno tivesse decidido assumir um corpo para encontrá-la.
Uma silhueta alta, feita de cristais, gelo e luz, começou a se formar no centro da trilha. Seu contorno parecia mudar de ângulo a cada segundo, como se fosse esculpido por mãos invisíveis — ou por forças que não dependiam de matéria.
O manto azul-profundo ondulava mesmo sem vento, como se tivesse vida própria. Pequenos flocos de neve gravitavam ao redor daquela figura, girando em órbitas caóticas e perfeitas, como estrelas dançantes.
Os olhos — dois pontos de luz cristalina — se abriram.
Eles não brilhavam como lâmpadas. Eles vibravam, como se fossem pontos onde o céu se dobrava sobre si mesmo.
E a voz… Ah, a voz.
Ela não veio de fora. Ela veio de todos os lugares ao mesmo tempo. Do ar. Da neve. Do chão. De dentro dela.
— Elena.
Ela estremeceu.
Não era um chamado. Era um reconhecimento — como se aquele nome tivesse sido dito pela primeira vez de forma verdadeira.
A figura avançou um passo, e quando o fez, o próprio chão pareceu ajustar-se, como um discípulo que abre espaço para seu mestre.
— Você atendeu — disse ele, e o som parecia ecoar dentro do peito dela, vibrando nas costelas, reverberando no cerne.
— M-mestre Northwind… — ela engoliu em seco, sem saber como sabia o nome, mas sabendo. — Eu senti você… desde o início.
Ele inclinou levemente a cabeça. Era um gesto pequeno, mas o ar ao redor se curvou em resposta.
— Não me sentiu. Sentiu o que eu movimento.
A frase pairou no ar como uma chave.
Os pelos dos braços de Elena se arrepiaram. O vento que falava… as sílabas antigas… os chamados…
— O vento que fala — Elena murmurou. — Era você?
O Guardião ergueu uma sobrancelha feita de gelo puro, e o movimento criou microfraturas luminosas sobre sua pele cristalina.
— Em parte. O vento não é meu servo, mas meu irmão. Ele leva minhas mensagens… mas traz de volta as suas.
Elena piscou, confusa. Seus pensamentos giraram como neve num redemoinho.
— As minhas?
Northwind se aproximou.
Cada passo dele parecia moldar o mundo. O chão não rangia sob seu peso — ele se ajustava, harmonizava, como se reconhecesse a autoridade daquela presença.
Seu tamanho era imenso e, ao mesmo tempo, não assustava.
Era como estar diante de uma avalanche calma — uma força colossal que escolhe não destruir.
— O vento só chama quem já está chamando — explicou ele, com uma suavidade que contrastava com sua imponência. — Você se esquece do que busca, Elena. Mas o vento não se esquece de quem o invoca.
Os olhos dela arderam, não de frio, mas de verdade.
— Eu não sei quem eu sou — ela confessou, sentindo uma vergonha antiga, quase infantil, como se estivesse admitindo algo que sempre soube, mas nunca teve coragem de encarar.
A expressão de Northwind mudou. Não havia dureza. Havia… orgulho. Um orgulho silencioso, sereno, profundo.
— Saber quem você é não é o ponto — ele disse. — É ter coragem de caminhar enquanto se lembra.
O vento soprou atrás dela, como se concordasse. Como se lhe desse um empurrão invisível.
Elena apertou o manto no peito.
— E por que agora? Por que você se mostra?
O Guardião ergueu uma mão imensa, construída de gelo translúcido. Quando a luz tocou seus dedos, pequenas constelações internas se acenderam, como se milhões de partículas estivessem vivas dentro dele.
Um pequeno cristal azul surgiu entre seus dedos — não entregue, mas revelado.
— Porque coragem não nasce antes da jornada — disse ele. — Nasce no exato momento em que tudo parece grande demais.
Os olhos de Elena encheram de lágrimas. Lágrimas quentes, apesar do frio.
— Eu sinto… — ela levou a mão ao peito onde o Coração do Tempo pulsava — …que tem algo acontecendo dentro de mim. Algo que eu não entendo.
Northwind aproximou-se mais um passo, até que ela pudesse sentir o ar frio vibrando ao redor dele — um frio que não doía, apenas despertava.
— Você está mudando de forma. De dentro para fora. FAR só devolve o que está pronto — repetiu ele, ecoando o ensinamento de Morgana. — E você está quase pronta para lembrar.
Elena respirou fundo, e o ar congelado pareceu queimar por dentro — não como gelo, mas como claridade.
— Lembrar… do meu nome?
O vento se ergueu numa espiral lenta, como se o próprio ar estivesse ouvindo a pergunta.
Northwind sorriu, e o sorriso abriu fissuras de luz no gelo que formava seu rosto, como rachaduras que revelavam ouro líquido por dentro.
— Sim. O nome que acende portas. O nome que sustenta mundos. O nome que FAR sussurrou quando você atravessou o portal.
Elena sentiu o coração bater forte, tão forte que parecia querer saltar do corpo.
— Mas eu ainda não sei…
— Não precisa saber — ele a interrompeu com gentileza firme. — Apenas caminhe. As estrelas já o cantaram. Agora, você deve ouvi-lo.
Ele então estendeu a mão — não para entregar algo, mas para que ela se aproximasse. Para que ela escolhesse.
Elena hesitou.
— E se eu não estiver pronta?
Northwind inclinou o corpo, trazendo o rosto próximo ao dela, e sua voz saiu como brisa sobre neve recém-caída:
— Coragem não é ausência de medo, Elena. Coragem é caminhar apesar dele.
A frase penetrou algo profundo dentro dela — tão profundo que doeu e aliviou ao mesmo tempo. Ela não era exigência. Era liberação.
O Guardião ergueu o braço em direção ao Norte, e quando o fez, o céu inteiro respondeu.
As nuvens se abriram. A neve cintilou como aurora. E um caminho de luz azul se formou na montanha, serpentando entre abismos e picos como um rio de estrelas congeladas.
Elena sentiu o vento soprar de novo — mas agora havia calor nele, um calor que vinha de dentro dela, não de fora.
— A partir daqui — disse Northwind — o vento te guiará. Mas cuidado: ele só leva quem confia. Quem tenta controlar… se perde.
Elena assentiu, tocando o peito uma última vez, como se quisesse se despedir da parte de si que ainda duvidava.
— Eu… vou tentar.
Northwind abriu um sorriso que parecia amanhecer.
— Não tente. Caminhe.
E então — como se nunca tivesse estado ali — ele se dissolveu em vento puro. Uma espiral de luz azulada subiu aos céus, misturando-se à aurora que nascia sobre as montanhas.
O silêncio voltou.
Mas não era o mesmo silêncio de antes. Era um silêncio que carregava direção.Um silêncio que falava.
Elena respirou fundo, olhou o caminho de luz criado por Northwind, e deu o primeiro passo.
O vento, agora desperto, a recebeu com um murmúrio suave — como um velho amigo que diz “eu estava te esperando”.
A jornada do Norte continuava.
E desta vez, ela não caminhava por instinto. Caminhava por coragem.




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