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Capítulo 16 – A Torre dos Sonhos Desfeitos

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A fenda aberta pela presença do Guardião Invisível levou Elena a uma clareira estranha, silenciosa demais para ser apenas natureza.

Era um silêncio que pesava.

Que observava.

Que parecia segurá-la pelo punho e dizer:

Até aqui, você veio com coragem. Agora… venha com verdade.


O vento cessou.

A luz mudou.

E diante dela surgiu uma estrutura que parecia ter sido esquecida pelo próprio tempo.


Uma torre.


Alta, estreita, torta — como se carregasse o peso de séculos de sonhos que nunca se realizaram.

Como se tivesse sido construída por mãos que desistiram no meio do caminho, mas que, mesmo assim, nunca deixaram que ela tombasse.


Seu topo estava quebrado.

Suas paredes, rachadas.

E, ainda assim, ela permanecia de pé, sustentada por algo que não era força, mas teimosia.

A teimosia de desejos que se recusam a morrer — mesmo quando já estão mortos.


Elena sentiu um arrepio que não era frio.

Era reconhecimento.


— Isso… sempre esteve aqui? — murmurou, com a voz quase engolida pela densidade do lugar.


O silêncio respondeu com uma pressão leve no peito, como se dissesse:


Sempre esteve em você.


A frase ecoou dentro dela de um jeito estranho — como se tivesse sido dita há muito tempo, por muitas versões de si mesma.


A porta se abriu sozinha quando ela se aproximou.


Não havia vento para empurrá-la.

Não havia mecanismo.

Parecia simplesmente… se render.


Como se a própria torre a estivesse aguardando — não para aprisioná-la, mas para libertá-la.


Elena entrou.


🜁 A Primeira Sala


Nada tinha cor.


Era como se todos os tons tivessem sido drenados, restando apenas sombras e restos de brilho que um dia foram intenções vibrantes — e, agora, estavam à beira da extinção.


Objetos quebrados flutuavam no ar — mas não eram objetos.


Eram ideias.

Eram metas não vividas.

Eram possibilidades interrompidas.


Eram projetos que ela abandonou antes de começar.

Decisões que adiou até não se lembrarem dela.

Vontades que dissolveu para caber em outras pessoas.


Todos presos em um estado de quase-existência.

Trêmulos.

Fragilizados.

Quase pedindo desculpas por ainda estarem ali.


Elena reconheceu alguns.


Um livro que ela quis escrever e nunca começou.

Uma viagem que planejou mil vezes e desistiu na véspera.

Um projeto de vida que abandonou quando alguém disse que “não combinava com ela”.


Outros ela reconheceu tarde demais:

sonhos que nem eram dela, mas que carregou porque alguém um dia insinuou que ela “deveria”.


Todos pairavam ali.

Como balões murchos de aniversários antigos.

Como ecos de intenções perdidas no tempo.


Elena tocou um deles.


O balão estourou em luz cinzenta.


E ela sentiu algo se desfazer dentro de si — uma expectativa que não era sua, mas que carregava desde a adolescência.

Uma expectativa que nunca escolheu — mas que obedecia como uma sentença.


— Eu… tentei tantas vezes — sussurrou, com um nó na garganta.


A torre respondeu com um gemido profundo, como se reconhecesse cada palavra.

Como se dissesse:


Sim. Eu vi cada tentativa.

E vi cada desistência.


Aquele som não julgava.

Acolhia.


🜂 A Segunda Sala


Era mais escura.

Mais pesada.

Mais densa como o ar antes de uma tempestade.


No centro, havia uma mesa longa, e sobre ela estavam todos os desejos que Elena tentou controlar.


Ali estavam:


Todos os resultados que ela forçou.

Todos os caminhos que insistiu em manter abertos, mesmo quando já estavam mortos.

Todos os futuros que tentou vestir sem perceber que não serviam.


Cada desejo estava representado como uma esfera translúcida — algumas rachadas, outras quase opacas, algumas com rachaduras internas que tremulavam como trovões presos.


Quando ela se aproximou, uma delas brilhou e se partiu.


Dentro havia a imagem de Elena tentando agradar alguém que nunca a viu de verdade.

Tentando caber em moldes que não foram feitos para ela.


Outra esfera se quebrou.

Dentro, Elena tentando provar algo para pessoas que nem estavam mais na sua vida — pessoas que talvez nunca tivessem estado de verdade.


Outra.

Elena vivendo um futuro que não queria, mas acreditava “ser o certo” porque o “certo” sempre tinha a voz de alguém que não era ela.


As esferas explodiam em silêncio, revelando verdades que queimavam e curavam ao mesmo tempo — queimavam ilusões, curavam distorções internas.


Elena levou uma mão ao peito.


— Eu estava tentando ser tudo — ela disse, com a voz baixa. — Menos eu mesma.


A torre tremeu.


Uma rachadura enorme subiu pela parede, como se a própria estrutura estivesse desmoronando junto com suas ilusões — como se aquele reconhecimento fosse uma chave que destravasse a verdade.


🜄 A Terceira Sala


Ao entrar, Elena entendeu:


A torre não era um castigo.


Era um espelho.


A sala final era diferente das outras — não havia escuridão, nem peso, nem ruínas flutuando.

Era… silenciosa.

Suave.

Quase sagrada.


No centro havia apenas um pedestal com um manto branco dobrado.


Elena se aproximou, sentindo o coração bater num ritmo que não era de medo — era de revelação.


Quando ela o tocou, o manto desfez-se em poeira luminosa, como se já tivesse cumprido seu propósito.


E sob ele…um espelho.


Um espelho simples.

Sem moldura.

Sem adornos.

Sem magia aparente.


Mas Elena sabia:a magia estava nela.


Ao se aproximar, ela não viu seu rosto.

Nem seu corpo.

Nem seu passado.

Nem seu futuro.


Viu apenas uma silhueta — vazia, brilhante, pura possibilidade.


Uma Elena sem rótulos.

Sem expectativas.

Sem máscaras.


— Quem… eu sou? — ela perguntou, com medo e esperança iguais.


Era uma pergunta que parecia vir da criança que ela tinha sido e da mulher que ela se tornaria — ao mesmo tempo.


A torre suspirou.


O chão começou a se desfazer aos poucos, como se a estrutura inteira estivesse sendo liberada — como se aquele último entendimento fosse suficiente para dissolver tudo que havia sido construído com medo.


E a voz — aquela voz sem corpo — ecoou uma última vez:


Para seguir, precisa esvaziar.

Para lembrar, precisa desaprender.

Para se tornar, precisa deixar cair o que nunca foi seu. —


O espelho brilhou intensamente.


E, pela primeira vez, Elena viu algo nele:


espaço.


Um espaço interno tão vasto que parecia capaz de acolher o mundo inteiro.

Um espaço que antes estava preenchido com esforços, expectativas, tentativas, medos.


Um espaço que agora… pertencia a ela.


O chão se abriu.


A torre desmoronou.


Mas Elena não caiu.


O vento — agora mais leve, mais gentil, mais familiar — a acolheu, sustentando-a como asas invisíveis.


Ele a envolveu com cuidado, como se embalasse alguém recém-nascido — ou alguém que acabara de renascer.


Enquanto a torre se desfazia em poeira de luz, Elena sentiu:


O que era controle, morreu.

O que era ego, quebrou.

O que era certeza, se dissolveu.


E o que ficou…foi apenas a verdade.


Simples.

Suave.

Profunda.


Ela respirou.


E o vento a conduziu para fora, para a próxima parte da jornada.


O caminho estava, enfim, livre.


Livre de ilusões.

Livre de peso.

Livre… para ser ela.

 
 
 

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