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Capítulo 8 – O Lago dos Sonhos Silenciosos

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Ainda era madrugada em FAR quando Elena deixou o campo das flores azuis. O céu estava coberto por véus luminosos que se moviam lentamente, como respirações do próprio Reino. Cada passo que dava parecia ecoar em outra dimensão, como se o chão guardasse memórias de todas as jornadas anteriores à sua.


A Rosa Azul continuava viva dentro do Grimório, pulsando em luz suave, e Elena sentia seu calor atravessar o tecido do manto. A flor parecia guiá-la, como um coração extra, batendo em harmonia com o seu. Mas naquela noite — ou seria dia? — o tempo parecia dobrado, fluido, fora de qualquer medida humana.


Enquanto caminhava, uma névoa prateada começou a se formar diante dela. Era densa e silenciosa. Não havia vento, nem canto de pássaros, apenas um murmúrio distante, como se o próprio ar sussurrasse lembranças. E então ela o viu: o lago.


O Lago dos Sonhos Silenciosos.


As águas eram tão imóveis que pareciam feitas de vidro líquido. O reflexo do céu nelas criava uma ilusão de profundidade infinita, e Elena teve a impressão de que se olhasse por muito tempo, cairia dentro de si mesma.


Ela se ajoelhou à beira da água e viu o próprio rosto refletido. Mas não era o mesmo rosto que conhecia. Era uma Elena com olhos mais cansados, quase tristes, como se carregasse o peso de mil sonhos abandonados. Ao seu lado, uma segunda Elena apareceu no reflexo — sorridente, leve, com os olhos brilhando de esperança. Depois uma terceira, uma quarta, uma infinidade de versões, todas coexistindo no espelho líquido.


— Cuidado com o que deseja ver — disse uma voz suave, ecoando de dentro do lago.


Elena se sobressaltou. A superfície se moveu, e do centro do espelho surgiu uma figura luminosa, esculpida em névoa e brilho — um ser de aparência quase humana, mas com asas translúcidas como véus de luz e olhos que mudavam de cor conforme falava.


— Quem é você? — perguntou Elena, embora sua alma parecesse já saber.


— Sou aquele que sonha contigo — respondeu a figura. — Sou o guardião do que germina no silêncio. Chamam-me Guardião dos Sonhos, mas sou também o eco das ilusões que não foste capaz de soltar.


O ar se tornou frio, e Elena sentiu a pele arrepiar.


— Por que me trouxe até aqui? — sussurrou.


— Porque teu coração está cheio de sonhos que não te pertencem mais. — A voz era calma, mas firme. — E enquanto não os libertares, não haverá espaço para a inspiração verdadeira.


As águas começaram a se agitar, e imagens começaram a emergir da superfície: cenas antigas, de desejos esquecidos, promessas não cumpridas, planos que Elena havia feito para agradar aos outros, não a si mesma. Ela viu a menina que queria ser perfeita, a jovem que acreditava que o amor se conquistava por esforço, a mulher que se escondia em tarefas para não sentir a própria dor.


Cada cena era bela e dolorosa ao mesmo tempo, como se cada uma fosse uma estrela se apagando lentamente.


Elena fechou os olhos.As lágrimas vieram.


— Eu não sabia… — murmurou. — Que carregava tudo isso ainda.


— Os sonhos não morrem — disse o guardião, aproximando-se da margem. — Eles apenas adormecem. Mas há os que devem despertar e os que precisam ser devolvidos ao silêncio.


Elena olhou novamente para o lago. Agora, no reflexo, via mãos surgirem da água — as suas — segurando as antigas versões de si. E uma a uma, começou a soltá-las. A menina que sonhava ser aceita. A mulher que acreditava que precisava provar valor. A que escrevia apenas o que os outros queriam ler.


Cada vez que soltava uma, uma luz dourada emergia da água e subia aos céus, como vaga-lumes sendo libertos.


Quando o lago ficou calmo novamente, Elena percebeu que sua imagem no reflexo havia mudado.Não havia mais múltiplas versões — apenas uma.E nos seus olhos, agora, havia o mesmo brilho das auroras que dançavam acima de FAR.


O guardião sorriu.


— Agora sim. Sonhos que florescem a partir do que é verdadeiro não precisam de permissão para existir. Apenas de coragem para serem vividos.


Ele estendeu a mão, e uma pena azul, translúcida como cristal, materializou-se no ar.


— Toma. Esta é a Pena do Silêncio. Ela escreverá apenas o que tua alma permitir. Usa-a para registrar teus sonhos, mas também para libertá-los quando for preciso.


Elena recebeu a pena, e ao tocá-la, o Grimório vibrou novamente, abrindo-se em uma nova página. As letras começaram a se formar sozinhas:


“Nem todo sonho precisa ser realizado.Mas todo sonho precisa ser ouvido.”


O lago então começou a desaparecer lentamente, dissolvendo-se em névoa e brilho. O guardião se curvou levemente, e antes de sumir, murmurou:


— Que teus sonhos sejam pontes, não prisões.


Quando o silêncio voltou, Elena ficou parada por um instante, com o Grimório em uma mão e a pena na outra. O ar cheirava a chuva e a despedida.


Ela sabia que algo dentro dela havia mudado — um vazio leve, mas cheio de paz. A trilha prateada reapareceu à frente, e ela seguiu.


Enquanto caminhava, pensou em como o Reino sempre lhe mostrava o que estava pronta para ver, nem um instante antes, nem depois. Talvez fosse isso o verdadeiro significado de inspirar-se — permitir-se respirar junto com o próprio tempo.


E, ao longe, o som de uma canção começou a se formar no vento — uma melodia suave, feita de notas que só se revelam a quem aprendeu a ouvir o próprio silêncio.


Elena sorriu.

E sob a aurora que cobria FAR, continuou sua jornada.

 
 
 

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